por paulo eneas
Olavo de Carvalho sempre teve uma relação ambígua com militares, até o fim de sua vida. Uma análise fria de sua interpretação do regime militar mostra que sua bronca com os fardados era por que não foram supostamente duros o bastante na repressão: “pegaram leve”, so to say. A leitura de Olavo sobre regime militar era errada em vários aspectos.

Primeiro por reproduzir a ideia ingênua de que militares eram anticomunistas, ou que se deveria esperar do regime uma diretriz anticomunista. Nunca o foram e o Governo Geisel foi prova disso. Desde quando um governo anticomunista apoiaria uma guerrilha comunista, como foi o caso de Angola, criaria um monte de estatais e adotaria economia fechada com reserva de mercado e protecionismo?

A intervenção militar de 1964 foi unicamente de natureza corporativa, por que sob o Governo Jango estava havendo d fato incitação à quebra de hierarquia na corporação militar. Na primeira fala de sua posse, Castelo Branco afirmou que não iria permitir que a Revolução fosse instrumentalizada pela “extrema-direita”, em referência indireta a Carlos Lacerda, o último político de direita de expressão nacional que o Brasil teve e que foi banido do país poucos anos depois pelo regime.

Olavo também errou na noção de “guerra cultural”, que por sua vez vem de uma interpretação invertida da noção de hegemonia cultural de Antonio Gramsci. Não vou entrar nesse ponto agora, ficará para próximo artigo.

O fato é que a esquerda nunca deixou de ter atuação política. Antes de 1964 ela tinha seus partidos, parlamentares eleitos, etc. Como o regime militar interrompeu com a atividade política institucional extinguindo os partidos políticos, a esquerda foi fazer atuação política “onde dava”: escolas, sindicatos, imprensa, meio acadêmico, entidades de bairro, etc.

Foi portanto uma contingência e circunstância que a direita, que ignora os fatos de nossa história, descreve em tom vitimista como “aparelhamento” da parte da esquerda. A verdade é que nunca foi uma escolha estratégica da esquerda “fazer guerra cultural antes”: para a esquerda, ou se fazia atuação política low profile sob um regime de exceção, ou se partia para a radicalização extrema via guerrilha.

Ao descrever essa circunstância como opção estratégia, a partir de uma leitura invertida de Antonio Gramsci, Olavo levou a direita à paralisia política, pois esta passou a acreditar (e acredita até hoje) na fantasia de que é preciso “fazer guerra cultural antes” para depois ter uma atuação política efetiva. Como isso não existe no mundo real, a “guerra cultural”, da qual todo mundo fala mas não sabe como fazer (justamente por ser apenas uma noção oca e vazia de significado) virou desculpa para a incompetência da direita na sua atuação política.

Olavo de fato passou pano e relativizou a censura dos militares, que era real. Faço questão de assinalar casos exemplares de censura e perseguição no regime militar contra pessoas que nada tinham a ver com a guerrilha esquerdista: isso ocorreu, por exemplo, com professores e pesquisadores universitários de física e matemática, áreas em geral avessas e quase imunes a ideologias.

Desde os anos cinquenta do século passado o Brasil ganhou certo peso (para um país pobre do terceiro mundo) nas áreas de física teórica e matemática, pois são áreas que “custam pouco” em ciência. O valor é medido em neurônios, que já vem do berço e de graça.

Nomes como do físico Cezar Lattes (isso mesmo, a Plataforma Lattes da CAPES é em homenagem a ele), Manfredo Perdigão do Carmo, Elon Lages Lima, Djairo Figueiredo, Jaime Timno, José Leite Lopes, e outros já eram, por volta dos anos sessenta e setenta, cientistas sexagenários de prestígio internacional.

Eram cientistas brasileiros que atuavam em universidades americanas e europeias de ponta como Caltech, Stanford, Columbia, Princeton, e faziam questão de manter os vínculos com o Brasil, principalmente na USP, no IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) e no CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas).

Nenhum deles até onde se sabe tinha qualquer relação com as ações criminosas de parte da esquerda a partir da metade dos anos sessenta, como os atentados terroristas e posteriormente a guerrilha comunista. Como afirmamos, eram cientistas sexagenários de exatas, que seguramente tinham opiniões políticas diversas, mas irrelevantes para a atividade que existiam.

Todos eles sofreram algum tipo de perseguição do regime. Por exemplo, toda a elite de pesquisadores em física e matemática de renome internacional que estava à frente do departamento de física da nascente Universidade de Brasília foi levada a pedir demissão por conta das perseguições.

Em uma de suas ultimas entrevistas, Manfredo do Carmo conta que quase foi exilado ou proibido de sair do Brasil para dar seus cursos em universidades estrangeiras para onde era convidado, por ser fichado no extinto SNI como “agente que pode oferecer perigo ao Estado”.

Manfredo era um matemático alagoano. Autor de inúmeros trabalhos acadêmicos e do livro Geometria Diferencial de Curvas e Superfícies, traduzido para vários idiomas e usado até hoje em cursos de matemática de universidades de ponta do primeiro mundo. O livro trata das bases teóricas do ramo da matemática que sustenta a Teoria da Relatividade. Por pouco Manfredo não virou um exilado ou um brasileiro proibido de pisar em solo nacional.

Se fôssemos uma nação assentada numa civilização consolidada, a história de nomes como o de Manfredo do Carmo, do físico Cezar Lattes (que cientistas estrangeiros consideram o fundador da moderna física de partículas, aquela do LHC etc, e sete vezes indicado ao Nobel de Física) seria matéria obrigatória nas escolas.

Mas voltando a Olavo, para quem na universidade brasileira só tem comunista e nada que presta: Olavo nunca abandonou a mentalidade revolucionária. Depois de falar cobras e lagartos sobre militares, já na segunda metade do Governo Bolsonaro defendia abertamente a “união do povo com os militares sob a liderança de Bolsonaro” para dar um novo rumo ao país.

Essas ideias e sua (dele, Olavo) enorme influência ajudaram na criação do ambiente de idolatria, insanidade e histeria coletiva e fervor revolucionário que tiveram seu desfecho trágico e quixotesco no 8 de Janeiro de 2023. Muita gente levou o slogan de Olavo ao pé da letra, confiando no capitão patriota, e achando que era só questão de “convencer” os militares a tomar o poder sob comando de Bolsonaro.

Quer coisa mais revolucionária que o “povo” tomando de assalto o Palácio, quebrando tudo e até defecando nas mesas? “Queremos intervenção militar com Bolsonaro no poder”, era a palavra de ordem que tomava conta da redes naquele período.

Conclusão Preliminar
Bem, pincelei e misturei aqui de propósito vários assuntos distintos mas interligados e de modo improvisado, a partir de uma discussão iniciada no grupo do Inteligência Analítica. Tenho me debruçado sobre esses temas para no médio prazo publicá-los em forma de ensaios mais organizados em nosso site Inteligência Analítica.

Entendo que esta é a discussão mais importante que a direita já deveria estar fazendo há muito tempo: analisar com honestidade o porquê de suas inúmeras derrotas e fazer uma revisão crítica honesta de suas práticas políticas e de suas bases e premissas teóricas, preservando e aprimorando que o que deve ser preservado, e descartando o que precisa ser descartado. Ao menos é isso que se acredita ser uma conduta genuinamente conservadora.

Mas não é isso que observamos. O que vemos hoje são os supostos e autoproclamados “intelectuais de direita” repetindo formulinhas discursivas requentadas surgidas em 2013/2015 para agradar o público, uma vez que todos eles tornaram-se reféns da aprovação social das redes traduzidas em likes e views e monetização.

No universo dessa retórica requentada permanente cínica e fingida, a direita não cometeu nenhum erro, fez tudo o que se precisava fazer (pois a política é arte do possível, segundo os cínicos) e todas as derrotas na verdade foram vitórias num xadrez estratégico quadridimensional. Ocorre que o autor desse texto não tem por hábito jogar xadrez, ao menos não esse…

Por fim, deve-se observar que as referências a Olavo de Carvalho aqui não são, por óbvio, depreciativas em relação a figura do professor. Ao contrário, é o reconhecimento de seu enorme peso e sua influência decisiva na formação da mentalidade política de quase a direita brasileira contemporânea.

Justamente por sua importância e inequívoca relevância, o legado de Olavo de Carvalho precisa ser avaliado sob o crivo da crítica intelectualmente honesta. Uma atitude que seguramente o professor aprovaria.

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