Proposta petista não extingue o real, mas é uma proposta ruim, baseada em pressupostos falaciosos, não irá ajudar em nada no comércio entre Brasil e Argentina e possui apenas viés ideológico para mostrar o alinhamento entre governos do Foro de São Paulo.
por paulo eneas
As notícias sobre estudos para a adoção de uma moeda comum para o Mercosul, ou ao menos para o Brasil e Argentina, tomaram conta do noticiário nos últimos dias gerando uma ansiedade apocalíptica em muitos influenciadores. “O Brasil vai ser destruído”, disseram alguns. Vamos entender o que de fato está ocorrendo.
A ideia de uma moeda única do Mercosul não é de agora. Já em 2020 o então presidente Jair Bolsonaro defendia enfaticamente essa proposta, e reafirmou-a durante visita oficial em Buenos Aires ao ex-presidente argentino Maurício Macri.
Na época, Jair Bolsonaro afirmou que uma moeda única seria a “realização de um sonho” do Mercosul, conforme pode ser visto no vídeo abaixo, em reportagem do Jornal da Gazeta.
Jair Bolsonaro afirmou também que tal suposta moeda única seria uma “barreira contra aventuras socialistas na região”. Acredite, ele disse realmente isso, sem explicar como uma entidade supranacional latino-americana associada a tal suposta moeda única poderia ser barreira para políticas socialistas.
Seu então ministro da Economia, Paulo Guedes, era um entusiasta da ideia. Guedes chegou a afirmar que num futuro médio existiriam no máximo umas cinco moedas no mundo e que estas seriam o dólar, o euro, o yuan chinês e, claro a super moeda única latino-americana do qual ele era ou é entusiasta.
Paulo Guedes foi além e fez um paralelo com o euro, a moeda única da União Europeia, afirmando que com tal moeda, o Brasil representaria no Mercosul o mesmo papel que a Alemanha representa para o bloco europeu, pelo fato de cada um desses países ser a economia mais forte em seus respectivos continentes.
Paradoxalmente, pouco mais de um ano depois, o ainda então ministro Paulo Guedes reclamava do quanto o Mercosul travava a inserção internacional da economia brasileira por conta da tarifa externa comum do bloco, como pode ser visto neste vídeo aqui da TV Senado.
Ou seja, se o Brasil não conseguia fazer valer seus interesses em assuntos envolvendo outros acordos internacionais, imagine-se então como nosso país seria capaz de fazer valer seus interesses soberanos estando ainda mais “amarrado” ao Mercosul por meio de uma moeda única, defendida pelo próprio Paulo Guedes.
Por que uma moeda única latino-americana no curto prazo é inexequível
A adoção de um moeda única, aqui entendida como meio de pagamento circulante, no âmbito do Mercosul ou apenas entre Brasil e Argentina é absolutamente inexequível no longo prazo pelas seguintes razões:
a) Tal única moeda demandaria a existência de uma autoridade monetária supranacional, uma espécie de Banco Central do Mercosul, encarregada de sua emissão. Para isso, cada país do bloco deveriam alterar sua constituição, extinguindo seu respectivo Banco Central ou suas funções primárias e delegando a autoridade monetária para o hipotético Banco Central do Mercosul. As chances políticas de tal medida ser aprovada no Brasil no médio prazo são quase nulas.
b) O bloco econômico precisaria adotar um política cambial comum. O Brasil adota o regime de câmbio flutuante desde o Plano Real. A Argentina segue com mecanismos populistas de controle cambial e não há sinalização alguma de que vá abrir mão desta ferramenta.
c) O regime de metas de inflação, a ser administrado por esta hipotética autoridade monetária supranacional, teria que ser o mesmo para todos os países que adotassem tal moeda. A economia argentina está longe atingir estes requisitos, uma vez que a inflação anual portenha está próximo dos 100% enquanto a inflação anual brasileira está em torno de um décimo desse valor.
d) Haveria necessidade de uma política monetária comum, com uma espécie de Taxa Selic do Mercosul compatível com a realidade fiscal de cada país. Ocorre que Brasil e Argentina possuem realidades fiscais muito distintas para possibilitar que ambos os países tenham uma mesma taxa nominal referencial de juros.
Outros entraves poderiam ser igualmente listados, especialmente aqueles de natureza fiscal. Portanto, a menos que o atual governo petista decida adotar uma atitude suicida, a possibilidade concreta de extinção do real como meio circulante brasileiro e sua substituição por uma hipotética moeda única do Mercosul ou com a Argentina não está no horizonte imediato.
O exemplo europeu mencionado há três anos por Paulo Guedes não pode ser visto de maneira simplista. Além das questões de soberania nacional e submissão a uma agenda globalista da Comissão Europeia, a adoção do euro como moeda comum da União Europeia foi um processo que levou décadas.
O que o governo petista realmente está propondo
A proposta do atual governo petista não é a de substituir o real como meio circulante nacional por uma hipotética moeda única com a Argentina ou do Mercosul. A proposta consiste em criar um meio de pagamento comum para os operações de exportação e importação entre Brasil e Argentina.
A proposta do governo petista, conforme explicitada nesta segunda-feira (23/01) pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a rigor nem pode ser chamada de moeda no seu sentido habitual de meio de troca circulante para uso das pessoas comuns.
A proposta assemelha-se muito mais a uma espécie de câmara de compensação financeira para operações de exportação e importação entre os dois países, com uma unidade de conta própria, que seria a tal moeda comum, conversível para cada respectiva moeda nacional, o peso e o real.
O próprio secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, explicitou em entrevista à Globo News que a intenção do governo petista é criar uma nova unidade de conta e meio de pagamento destas operações de exportação e importação devido à baixa conversibilidade do peso argentino.
Galípolo argumentou também que, no seu entender, “não faz sentido” que o comércio entre países da América Latina seja afetado (ou fique constrangido, segundo suas palavras) pela decisões da política monetária norte-americana.
A proposta petista é inócua e possui apenas viés ideológico
O argumento de Gabriel Galípolo é frágil e mostra que essa iniciativa petista possui unicamente um viés ideológico, e não irá facilitar em nada o comércio entre Brasil e Argentina. Pois a suposta nova unidade de conta, que corresponderia à tal moeda comum, seria apenas uma nova estrutura burocrática supranacional que iria, ela sim, criar constrangimentos para o comércio na região.
Querer afastar a influência do dólar nas transações comerciais entre os dois países, como defende Galípolo, é igualmente sem sentido algum, uma vez que os custos de produção de praticamente todos os bens exportáveis de todos os países, incluindo as commodities, são afetados pelo dólar.
Daí decorre que naturalmente as transações comerciais entre países distintos são baseadas na moeda norte-americana, pois os custos dos itens comercializados já são dolarizados.
É pouco crível que Gabriel Galípolo realmente acredite que possa retirar a influência do dólar nas transações bilaterais entre Brasil e Argentina mediante a criação de um mecanismo burocrático transnacional destinado unicamente a administrar uma nova unidade de conta, que não passará de um artifício contábil.
Resumindo, podemos dizer que:
1) Proposta de moeda única no Mercosul já foi defendida em 2020 pelo ex-presidente Bolsonaro e seu então Ministro da Economia, Paulo Guedes, e ambos utilizaram argumentos frágeis e sem substância para a defesa da proposta.
2) A criação de uma moeda única latino-americana não está no horizonte de médio ou longo prazo, devido às enormes disparidades econômicas entre países da região, além dos obstáculos políticos internos que seriam enfrentados em cada país, especialmente no Brasil.
3) Proposta petista atual não extingue o real, mas cria uma nova unidade de conta, supostamente não afetada pelo dólar, para operações de exportação e importação entre Brasil e Argentina.
4) A proposta petista é ruim em todos os sentidos, não possui eficácia, não irá fazer com que o dólar deixe de influir nos preços dos itens exportados ou importados, pois não se faz isso por mágica, e irá apenas criar mais entraves burocráticos para exportadores e importadores dos dois países.
5) A proposta petista é unicamente um blefe ideológico, para mostrar o alinhamento político entre governos de partidos pertencentes ao Foro de São Paulo.