Vladimir Putin espalhou no Ocidente a mentira da “descoberta” de laboratórios “secretos” de armas biológicas na Ucrânia, para justificar sua guerra de agressão criminosa àquele país. Nesta reportagem desmontamos esta mentira, com provas documentais de tratados internacionais assinados pela própria Rússia, que mostram o destino dado aos laboratórios de armas biológicas construídos pelos antigos soviéticos.
por paulo eneas
O maior laboratório de armas biológicas do mundo chama-se Vector, e fica localizado na cidade siberiana de Koltsovo, na Rússia. O laboratório, que armazenava, entre outros, o vírus da varíola, explodiu em 16/09/2019, conforme reportado por esta fonte aqui, esta outra e também esta, todas independentes entre si e com linhas editoriais distintas.
Foi neste mesmo laboratório Vector que produziu-se a primeira vacina do mundo contra o vírus da Covid, a Sputnik russa. A explosão no laboratório de armas biológicas ocorreu a apenas cerca de 20km de Novosibirsk, a terceira cidade mais populosa da Rússia.
Como usualmente faz, o regime de Vladimir Putin censurou a imprensa russa, mas a notícia da explosão chegou na imprensa ocidental da época, como mostram as fontes acima. O incidente antecedeu em algumas semanas a eclosão da pandemia do coronavírus em Wuhan, na China.
A pandemia do coronavírus somente seria reconhecida oficialmente pela Organização Mundial de Saúde em março do ano seguinte e o atraso nesse reconhecimento, quando já havia evidências o bastante da disseminação do coronavírus a partir de Wuhan, deveu-se a uma exigência do Partido Comunista Chinês, que para todos os fins que importam controla a Organização Mundial de Saúde.
O atraso pode estar também associada a uma pressão da Rússia, por conta da explosão no laboratório Vector da Sibéria, pois seria embaraçoso para os russos ver a eclosão de uma pandemia viral logo após um desastre em um de seus laboratórios de armas biológicas, construído ainda na era soviética.
A conjectura acima encontra respaldo em um report do Global Biosecurity Journal, uma publicação científica voltada para temas de epidemias, pandemias, biossegurança e bioterrorismo, e que publica relatórios anuais revisados por pares.
Um report do Global Biosecurity Journal publicado em 31/08/2020 mostra a ocorrência de surtos epidêmicos não explicados na região russa em torno do local da explosão nos três meses seguintes ao incidente.
O report também menciona a liberação acidental da bactéria brucella em dezembro de 2019 em um laboratório na China, bem como relatos de casos de pneumonia severa que poderiam ser os primeiros casos de Covid-19.
União Soviética: produtora de armas biológicas em larga escala
O acidente no Laboratório de Virologia Vector em Koltsovo é o remanescente de uma longa história de dedicação à pesquisa para produção de armas biológicas em larga escola pela antiga União Soviética.
Esta pesquisa e produção de armas biológicas pelos soviéticos, que envolvia entre outros tentativas de combinar o vírus do HIV com outros vírus letais ao ser humano, como o Marburg e Ebola, para a produção artificial de cepas mais agressivas, era feita principalmente em laboratórios semelhantes ao Vector.
Estes laboratórios foram construídos pelo antigo regime soviético em sua grande maioria nas suas repúblicas satélites, inclusive a Ucrânia, então sob domínio soviético e com governo nacional no exílio, desde 1921, conforme mostramos nesta reportagem aqui. Todos estes laboratórios tinham finalidade bélica: produção bioweapons, ou armas biológicas.
Com o fim da União Soviética, tanto os russos quanto o resto do mundo viram-se diante de um gigantesco problema: o que fazer com todo aquele arsenal de armas biológicas produzidas pelos soviéticos, espalhadas tanto em território russo quanto nas repúblicas satélites. Um arsenal que representava um risco para os próprios russos.
A principal preocupação era que estas armas biológicas viessem a parar nas mãos de grupos terroristas, inclusive aqueles grupos terroristas que foram, e muitos continuam sendo, fomentados e financiados pelos próprios soviéticos, agora sob a batuta de Vladimir Putin.
O Memorando de Budapeste Sobre Arsenal Nuclear da Ucrânia
A solução encontrada pela comunidade internacional para o legado de armas de destruição em massa da antiga União Soviética veio sob a forma de diversos tratados internacionais, assinados pela própria Rússia pós-soviética e países ocidentais para o manejo daqueles arsenais de destruição, que incluíam as armas nucleares e as instalações de produção de armas biológicas, ou seja, os referidos laboratórios soviéticos.
Um desses tratados mais conhecido é o Memorando de Budapeste. Este memorando é um tratado internacional assinado em 1994 entre Estados Unidos, Federação Russa, Reino Unido, Irlanda do Norte e Ucrânia no âmbito do Tratado Internacional de Não Proliferação de Armas Nucleares.
Por meio deste memorando, cujo texto pode ser lido na íntegra neste link aqui em quatro idiomas, a Ucrânia abria mão de todo seu arsenal atômico herdado da antiga União Soviética em troca da garantia dada pelos demais países signatários do acordo de assegurar a independência, soberania e integridade territorial da Ucrânia contra qualquer ameaça externa.
O memorando na verdade foi imposto à Ucrânia, que na época viu-se ameaçada de sanções econômicas e não reconhecimento de sua independência recém conquistada se não aderisse ao tratado que, para todos os fins, foi um tratado de rendição sem guerra imposto pelos Estados Unidos e pela Rússia àquele país.
O tratado foi em grande parte viabilizado por conta do governo ucraniano daquele momento, que era para todos os efeitos um governo títere de Moscou. Pois com o fim da União Soviética ocorreu na Ucrânia o mesmo processo ocorrido na Rússia: no caso russo, as instituições de poder foram tomadas por antigos agentes do regime soviético, principalmente os membros da KGB, como Vladimir Putin.
No caso ucraniano, os governos que se seguiram após a independência em 1991 também eram próceres de Moscou, o que somente começou a ser rompido em parte a partir de 2004 com a chamada Revolução Laranja, que era essencialmente a expressão da vontade do povo ucraniano de sair do jugo de Moscou, sob o qual vivia há séculos e de forma mais repressiva desde 1921.
Por meio desse tratado imposto à Ucrânia, o país saiu da posição de terceira maior potência bélica-atômica do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da Rússia, o que lhe dava uma enorme vantagem em qualquer mesa de negociação internacional, para uma posição de completa vulnerabilidade, com a sua segurança e integridade ficando “asseguradas” apenas no papel.
Por meio do tratado todas as ogivas nucleares que estavam na Ucrânia, herdadas do período da União Soviética, foram transferidas para Moscou nos termos do Memorando de Budapeste. O tratado também previa que os custos da operação de realocação deste armamento nuclear seriam arcados, como de fato foram, pelo governo dos Estados Unidos.
A invasão da Ucrânia pela própria Rússia em fevereiro de 2022 significou o rompimento unilateral deste tratado por parte dos russos. E também um rompimento por parte dos Estados Unidos, uma vez que a invasão teve o endosso e a aprovação de Joe Biden, desde que fosse um fast track ou blitzkrieg.
Esse endosso inicial não tão secreto do governo democrata norte-americano à invasão russa explica a “carona” oferecida por Joe Biden ao presidente Ucraniano, Volodymyr Zelensky, como forma de remediar a inação americana junto à opinião pública interna.
A concordância inicial de Joe Biden com a invasão russa foi revelada em detalhes por Andrei Illarionov, ex-conselheiro econômico especial de Vladimir Putin, em entrevista dada à Rede NTD pouco após o início da Guerra da Ucrânia. A entrevista foi reproduzida em grande parte com tradução para o português no Canal PH Vox.
O único país que cumpriu os termos previstos no Memorando de Budapeste quando da invasão da Ucrânia foi o Reino Unido que, tão logo a guerra teve início, providenciou o envio de armas e treinamento aos soldados ucranianos sob os auspícios do Memorando de Budapeste.
Os Tratados Internacionais Sobre Laboratórios de Armas Biológicas Soviéticos
O Memorando de Budapeste deu uma solução principalmente ao problema do arsenal atômico herdado dos soviéticos que estava em solo ucraniano, ainda que o objetivo tenha sido na prática do de desarmar a Ucrânia, colocando em risco estratégico a integridade territorial e a soberania daquele país.
Mas estava ainda em aberto o problema dos inúmeros laboratórios de armas biológicas espalhados por toda a antiga União Soviética e suas ex-repúblicas satélites da cortina de ferro.
A partir de meados da década de noventa uma série de tratados internacionais foram firmados entre Estados Unidos, países europeus e a própria Rússia e as antigas repúblicas para fazer o manejo daquelas instalações de armas biológicas herdadas do regime soviético.
O principal problema envolvido com esses tratados era também o dinheiro: o custo gigantesco para isolar vírus e outros patógenos e para fechar ou converter estes laboratórios em instalações para fins não bélicos. A quase totalidade desses custos foram arcados pelos Estados Unidos.
Esses tratados ganharam momentum quando o então presidente da Federação Russa, Boris Yeltsin, anunciou em abril de 1992 a decisão formal da Rússia de aderir à Biological Weapons Convention (BWC), convenção internacional de banimento de armas biológicas. Junto com a adesão, veio a decisão russa de encerrar imediatamente todo o esforço empreendido desde a era soviética na pesquisa e desenvolvimento de armas biológicas.
Quando do fim da União Soviética, cerca de 1.7 milhão russos trabalhavam em laboratórios de pesquisa e desenvolvimento de armas biológicas, sendo que 97% desta atividade era custeada pelo governo soviético, ques estava em ruina econômica.
Aproximadamente 60 mil cientistas russos estavam envolvidos nessas atividades, que eram em grande parte secretas, especialmente durante o período da Guerra Fria, ainda que houvesse algumas informações obtidas pelo serviços de inteligência ocidentais.
O principal diretor de todos estes programas soviéticos de armas biológicas era o microbiologista russo Ken Alibek, que posteriormente desertou, migrou para os Estados Unidos e publicou o livro Biohazard: The Chilling True Story of the Largest Covert Biological Weapons Program in the World, que é mais completa compilação que se tem sobre o assunto e revela em detalhes o quanto os soviéticos estavam dedicados à produção desse tipo de armamento.
Um relatório amplo e completo, também traçando o cenário geopolítico daquele período e denominado por Securing Former Soviet Biological Weapons, elaborado por Kenneth N. Luongo e outros autores, mostra todos os detalhes das negociações entre norte-americanos, europeus e russos em tono desses laboratórios. O relatório traz também os debates havidos no Senado dos Estados Unidos na época a respeito.
Nesse ambiente, ao longo da década de noventa, inúmeros tratados sob os auspícios das Nações Unidas ou bilaterais foram firmados entre Estados Unidos, países europeus e russos ou cada uma das ex-repúblicas satélites soviéticas.
Em comum a todos estes tradados havia alguns pontos: os custos para o isolamento (securing) das armas biológicas produzidas pelos antigos soviéticos ficavam sempre com o Ocidente, principalmente os Estados Unidos. Os laboratórios seriam todos fechados ou convertidos em instalações de pesquisa para fins não bélicos.
Também ficou acordado que o acesso a estes laboratórios reformados para inspeção internacional seria assegurado, inclusive para os laboratórios em território da Rússia. O mesmo valendo para laboratórios nas ex-repúblicas satélites.
No caso da Ucrânia, foi firmado um acordo entre aquele país e os Estados Unidos para o manejo dos antigos laboratórios soviéticos de armas biológicas em território ucraniano.
O acordo, que pode ser visto na íntegra nesse link aqui, foi firmado em Kiev em agosto de 2005 sob os auspícios do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e de Armas de Destruição em Massa, que inclui a Convenção sobre Armas Biológicas a qual a própria Russa de Boris Yeltsin havia aderido. O acordo foi obviamente público, e ratificado pelo Senado do Estados Unidos.
Diante desse histórico documentado, com tratados e convenções de conhecimento público, fica evidente que alegação das forças invasoras russas de terem “descoberto” laboratórios “secretos” na Ucrânia não passa de uma gigantesca mentira e desinformação russa, pois tais laboratórios nunca foram secretos, exceto durante o período soviético, e foram construídos pelos próprios russos na era da Cortina de Ferro.
A “denúncia” dos russos foi desmascarada na própria ONU, quando o representante da Rússia foi apresentar a suposta denúncia da “descoberta”, para fins unicamente de propaganda.
No mesmo momento em que fazia a “denúncia”, o diplomata russo foi repreendido pela mesa diretora dos trabalhos, que lembrou-lhe que a sua “denúncia” trazia apenas informações já sabidas pela comunidade internacional e que constam em diversos tratados internacionais, muitos deles subscritos pelos próprios russos.
Cabe ainda perguntar: se os laboratórios supostamente “secretos” e “descobertos” pelos russos em solo ucraniano violam de fato a lei internacional e as diversas convenções e tratados a que as partes envolvidas são signatárias, por que o regime de Vladimir Putin não franqueou o acesso a inspeção internacional desses laboratórios para dar confirmação independente à sua “denúncia”?
A despeito da flagrante mentira, a rede de desinformação russa disseminou a narrativa falsa sobre tais laboratórios como mais uma justificativa retórica para a invasão russa da Ucrânia. As justificativas anteriores iam desde a suposta “denazificação” de um país que tem um presidente judeu, até o combate a gays.
A bem da verdade, nenhuma justificativa retórica russa se mantém de pé diante diante dos dados da realidade. Os russos invadiram a Ucrânia por que simplesmente não reconhecem nem admitem a existência de um povo que escolheu outro caminho que não viver sob o jugo russo.
O fato de parte da desinformada direita ocidental dar crédito às mentiras russas e endossar a guerra de agressão que Vladimir Putin empreende contra o povo ucraniano revela a fragilidade moral e ideológica desta direita ocidental.
Revela também eficiência da máquina de propaganda e desinformação de Vladimir Putin que, assim como os laboratórios de armas biológicas, foi também herdada da antiga União Soviética, cuja ruína Vladimir Putin já descreveu como a grande tragédia do século vinte.
Referências:
1) The Treaties That Make The World Safer Are Struggling
2) Ukraine War: What Is The Budapest Memorandum and Why Has Russia’s Invasion Torn It Up?
3) Tailored Intelligence to Detect Unusual Epidemic Cctivity Following the Explosion at Vector, Russia
5) How the Budapest Memorandum Paved the Way for Russia’s Invasion of Ukraine
6) Russia Claims U.S. Labs Across Ukraine Are Secretly Developing Biological Weapons
8) Biological Threat Reduction Program
9) Building a Forward Line of Defense: Securing Former Soviet Biological Weapons
10) “Biden Deu Carta Branca Para Putin na Ucrânia” diz Ex-Assessor de Putin – Transmissão do PH Vox
11) Desintoxicação Russa: Transmissão do Canal Monday Cast
12) Biohazard: The Chilling True Story of the Largest Covert Biological Weapons Program in the World – by Ken Alibek and Stephen Handelman