por paulo eneas
Uma denúncia de desmatamento ilegal, pois executado mediante licença de exploração florestal obtida por meio supostamente fraudulento, no município de Feliz Natal (MT), em uma região próxima ao Parque Nacional do Xingu, mostra os caminhos intricados permeados por corrupção, ilegalidades e influência de elites políticas locais que envolvem a aplicação da legislação ambiental e toda a questão fundiária no Brasil.
A história teve início entre os anos de 1953/1955, quando uma área rural que hoje encontra-se no município de Feliz Natal (MT), próximo à cidade de Sinop (MT) e no entorno do que viria a ser o Parque Nacional do Xingu, foi adquirida por uma família de empreendedores agrícolas.
Quando foi adquirida, a área pertencia ao então município de Chapada dos Guimarães e era conhecida como Gleba Cauby, em referência ao nome de uma das etnias indígenas da região, e posteriormente passou a ser denominada de Gleba Porto Feliz.
Desde sua aquisição, propriedade foi preservada em sua totalidade, incluindo sua cobertura de vegetação nativa, por meio da execução de atividades rurais que permitiram a preservação das condições naturais do local, atividades estas que também incluíram o trabalho de indígenas locais.
Com a criação do Parque Nacional do Xingu em 1961, cerca de um quinto da área do município de Feliz Natal passou a fazer parte desta reserva indígena. Após a criação da reserva indígena, o Governo do Estado de Mato Grosso declarou determinadas áreas daquele município próximas ao parque como sendo terras devolutas.
Desde então iniciou-se na região um processo permanente de grilagens, ações ilegais de madeireiras clandestinas e outros conflitos agrários, que deram origem a uma série de disputas judiciais pela propriedade de terras na região.
Uma destas disputas envolve justamente a Gleba Porto Feliz, que originalmente possuía 10 mil hectares de extensão, e que hoje possui uma área de cerca de 6 mil hectares conforme documentado pelo CAR-GEO. A propriedade de Porto Feliz encontra-se em litígio entre particulares.
Em junho de 2013, a Agropecuária Diamante, proprietária da Gleba Porto Feliz, deu entrada em um processo de regularização fundiária (N.º 647241/2013) junto ao Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), uma vez que área se encontra em terras declaradas como devolutas. Em decorrência do processo e por decisão judicial, os imóveis encontram-se sub judice. Em fevereiro de 2016, a agropecuária recebeu autorização do Governo do Estado de Mato Grosso para a realização de atividade pecuária na área.
O litígio iniciado iniciado em 2016 ocorre entre a Agropecuária Diamante e um grupo de pessoas que se apresentam como supostos proprietários, entre eles Rogério Luiz Rodrigues, e os herdeiros do empresário Evandro Alberto de Oliveira Bonini.
Rogério Luiz Rodrigues foi Secretário de Meio Ambiente da Prefeitura de Sinop (MT) na gestão do prefeito Juarez Costa (2009-2016). Uma busca no site Jus Brasil mostra a existência de 162 processos associados ao nome do ex-secretário.
Por sua vez, Evandro Alberto O. Bonini faleceu em outubro de 2007, por afogamento. Seu corpo foi encontrado no litoral de Ubatuba (SP) após ter desaparecido no mar de Guarujá (SP), conforme mostra reportagem do G1 da época.
Evandro Alberto de Oliveira Bonini era na época mantenedor da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) e presidente da Fundação Fernando Lee que, por seu intermédio, alegadamente exercia forte influência política no Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat). O site Jus Brasil mostra a existência de 240 processos associados a seu nome.
O Estado de Mato Grosso, por meio da Secretaria do Meio Ambiente, agiu aparentemente de modo inadvertido em favor de um dos lados do litígio judicial envolvendo a Gleba Porto Feliz, concedendo licença de exploração florestal – ou seja, permissão para desmatamento – a uma das partes.
A licença de exploração florestal da área da Gleba Porto Felizfoi concedida pela Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso em favor de Rogério Luiz Rodrigues com base na exibição de documentos de compra da propriedade cuja legalidade é contestada.
Em ofício encaminhado ao Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), a Agropecuária Diamante reporta que a alegada posse da área da Gleba Porto Feliz por parte de Rogério Luiz Rodrigues baseia-se em “contratos unilaterais duvidosos” no entender dos advogados da agropecuária.
Estes afirmam que além das imprecisões quanto às delimitações da área cuja posse é alegada, tais contratos teriam sido também utilizados para alegar a propriedade de outras áreas distintas daquela da Gleba Porto Feliz.
Ainda segundo o ofício apresentado pela Agropecuária Diamante, Rogério Luiz Rodrigues teria obtido licença para exploração florestal em uma área de domínio público, como se dele fosse, área esta que encontra-se em litígio judicial (interdito proibitório), na cidade Feliz Natal (MT). Processo n.º 202-16.2017.811.0093, sob código 78599, que está em trâmite na Vara Única da Comarca de Feliz Natal (MT). O processo foi instaurado há seis anos e ainda não foi prolatada decisão judicial sobre o caso.
O ofício da Agropecuária Diamante ainda é taxativo ao afirmar que Rogério Luiz Rodrigues solicitou e conseguiu junto à Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso “projeto de exploração desenvolvido sob a tutela estatal sobre área pública, sem título de domínio concedido a particular e objeto de litígio judicial, pelo que, se entende, ser irregular o desenvolvimento de qualquer atividade de extração vegetal sobre ela, seja por violar normas ambientais como processuais vigentes”.
O ofício enviado pela Agropecuária Diamante ao Instituto de Terras de Mato Grosso é datado de 21/10/2021 e soma-se às diversas denúncias que a empresa tem feito desde 2020 junto ao órgão e junto à Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso referentes ao desmatamento ilegal que está sendo efetuado na Gleba Porto Feliz mediante licença florestal alegadamente fraudulenta.
Em vista deste histórico e do erro flagrante cometido pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso de ter concedido licença de exploração florestal a Rogério Luiz Rodrigues, a Agropecuária Diamante entrou com pedido de cancelamento da licença concedida em 2020, pois entende que tal concessão pode causar prejuízos ao próprio Estado e à agropecuária.
Os advogados da companhia também entendem que existe uma flagrante ilegalidade em se conceder “a um particular direito de exploração de bem público, à revelia de processo de concessão, o que vai contra aos princípios constitucionais de isonomia, publicidade, legalidade, interesse público”.
Pois entendem os advogados que a posse alegada por Rogério Luiz Rodrigues não é posse mansa, e pontuam que o beneficiário da licença está envolvido em outros processos que envolvem exploração ilegal de madeira.
O que fica evidenciado nesse episódio singular é a ambiguidade da postura da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso. Pois ao mesmo tempo em que concede a um madeireiro que é parte em processo litigante uma licença de exploração madeireira de uma área pública cuja propriedade encontra-se em litígio, a secretaria tem, simultaneamente, notificado à outra parte, a Agropecuária Diamante, sobre atividades de desmatamento identificadas via satélite. Atividades estas que a própria secretaria autorizou à outra parte, mediante concessão de licença baseada documentação de propriedade considerada duvidosa ou ilícita.
A notificação de atividade não autorizada de desmatamento pode ensejar processos de crime ambiental, sujeito a multas elevadas, em que a ré seria a própria companhia, que não está envolvida nessa atividade, uma vez a área encontra-se em litígio, sendo uma das partes litigantes o beneficiário da licença florestal.
Ainda no entender dos advogados da Agropecuária Diamante, a Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso errou ao não analisar o processo litigioso e não ter suspendido a concessão da licença florestal. Em decorrência, a madeira que está sendo retirada atualmente da Gleba Porto Feliz pertence de direito ao Estado de Mato Grosso, por ser área pública devoluta, ou à Agropecuária Diamante, se a justiça assim o decidir.
A ambiguidade da conduta da secretaria reside ainda no fato de, ao notificar a agropecuária sobre a atividade de desmatamento, o órgão reconhece implicitamente a empresa como proprietária da área.
Os advogados ainda afirmam que se o Estado de Mato Grosso não possui uma base de dados que possibilite a identificação de posses de terra, deveria o Estado utilizar os registros do Instituto de Terras de Mato Grosso, cuja credibilidade e fé pública são inquestionáveis, e aplicar o princípio da anterioridade para dirigir, ao menos no âmbito da secretaria, para decidir quanto à concessão da licença florestal.
Este princípio estabelece que, na ausência de outros meios, a posse da terra é assegurada à solicitação mais antiga de processo de regularização fundiária junto ao órgão. Até antes do ano de 2013 não havia qualquer outro processo de regularização fundiária da Gleba Porto Feliz, sendo o processo da Agropecuária Diamante o mais antigo portanto.
Questionada a respeito, a Secretaria do Meio Ambiente reconhece a existência de litígio sobre a posse da área, mas alega não ver nesse fato impedimento para a concessão da licença florestal. O órgão também alega não ver motivo motivo para o cancelamento da licença concedida e afirma, de modo surpreendente, que não caberia à Secretaria entrar no mérito do litígio possessório.
O argumento da secretaria equivale a dizer que o órgão considera razoável conceder licença de exploração ambiental de terras devolutas que estejam sob litígio entre particulares, ainda que o beneficiário da licença não tenha como comprovar a suposta posse da área, possua histórico de processos na justiça envolvendo atividade de extração ilegal de madeira, e mesmo que tal licença venha a acarretar prejuízo potencial ao Estado.
A atuação da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grasso neste episódio contrasta com as falas do governador Mauro Mendes em sua participação na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022 (COP-27), realizada em novembro em Sharm El-Sheikh, no Egito. No evento, o governador mato-grossense exibiu um cenário róseo sobre as práticas proteção ambiental em seu Estado.
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