A agenda identitária da esquerda somente se impõe pela força coercitiva do Estado, uma vez que ela não se materializa no imaginário coletivo, que nunca a abraçou na sua totalidade. Logo, o contraponto a esta agenda não se faz prioritariamente na esfera da guerra cultural e da disputa na opinião pública, pois ali ela seria claramente derrotada, mas sim lá onde ela reside, no campo da institucionalidade e do ordenamento jurídico.
por paulo eneas
A força da agenda identitária em suas diversas variantes reside no fato de ela ser imposta pela coerção estatal, pois no campo da opinião pública mais ampla esta agenda é amplamente rejeitada. O contraponto que a direita pretenda fazer em relação a esta agenda deve ser feito, portanto, por meio da atuação política efetiva no âmbito institucional, de modo a entregar resultados em termos de mudanças no ordenamento jurídico. Esta é a esfera de atuação mais importante.
A direita precisa dimensionar adequadamente cada uma das pautas desta agenda identitária esquerdista para identificar em que medida cada uma dela possui ou não capacidade de conquistar o imaginário popular por meio da guerra cultural. Algumas dessas pautas de fato conquistaram o imaginário da população, tornando-se elementos de valor introjetados na cultura mais ampla, como as versões mais “soft” do feminismo.
Mas por outro lado, pautas como ideologia de gênero, sexualização precoce, bandidolatria, linguagem neutra, aborto, body acceptance e algumas outras encontram forte resistência no imaginário das pessoas comuns. Ou ao menos não encontram adesão em escala e densidade social fortes o bastante para tornarem-se elementos de pressão ou de demanda.
Podemos constatar isto no caso do aborto. Já há quase um século a esquerda tenta normalizar o assassinato de bebês em gestação, mas a maioria da população segue rejeitando essa prática. E se hoje ela é mais “acessível” é por que criaram-se mecanismos via ordenamento jurídico e institucional para sua viabilização. E observe-se que no Brasil muito do avanço desta prática decorre de decisões de outros agentes do Estado, e não do parlamento.
A direita não pode cair no erro de considerar as esferas da guerra cultural e da ação política institucional como sendo estanques, ou imaginar que esta é somente expressão biunívoca direta daquela.
Se isso fosse verdade, então a democracia seria um regime político perfeito, pois teríamos que concordar que as normas jurídicas emanadas do poder político institucional são de fato expressão direta da vontade popular, moldada pela guerra cultural hegemonizada pela esquerda. Ocorre que não é assim, as sociedades humanas não funcionam assim.
Ainda no caso do aborto, observe-se as mudanças de estratégias que o movimento revolucionário teve que adotar em relação a esta agenda em vista dos obstáculos que foram, e continuam sendo, enfrentados pelo abortismo para conquistar o imaginário popular: o abortismo começou na primeira metade do século passado como solução para o (inexistente) problema da superpopulação mundial.
Décadas depois, ele passou a ser tratado sob a roupagem de “planejamento familiar”, conceito que nunca foi definido de maneira precisa justamente por que nunca se tratou de planejar coisa alguma, mas sim de se disseminar a prática do aborto.
Passadas mais algumas décadas, passou-se a falar em aborto como “direito da mulher”, até chegar-se à sofisticação retórica dos “direitos reprodutivos”. Afinal, quem poderia se colocar contra “direitos”? Mas o fato é que a prática do aborto avança não por conta da pressão social decorrente da sua aceitação no imaginário coletivo (pois lá ele segue sendo rejeitado amplamente), mas sim por imposições do Estado.
Portanto, entendo que parte dos conservadores erram ao descrever de modo linear a relação entre guerra cultural e construção do imaginário e as políticas públicas e ordenamentos jurídicos decorrentes da agenda progressista. Essa relação linear, ou de causa e efeito diretos, não existe, e decorre de uma interpretação errada daquilo que o professor Olavo de Carvalho disse a respeito.
Voltando à pauta da ideologia de gênero, o leitor pode ele mesmo fazer uma aferição junto a seu círculo de relações próximas: quantas são as pessoas comuns de seu convívio social, independente da orientação sexual de cada uma delas, que estão realmente demandando o direito de usar banheiros públicos de modo indiscriminado, segundo sua “identidade de gênero”?
A resposta que cada um encontrar para essa pergunta permitirá concluir que esta pauta específica não encontra sua contraparte expressa como demanda de segmentos da sociedade, e concluirá por si mesmo que esta pauta é na verdade expressão da vontade ideologicamente motivada de ser impor uma agenda por meio de engenharia social via poder coercitivo do Estado.
E este poder coercitivo é exercido por meio do ordenamento jurídico, que é a principal ferramenta usada pela agenda identitária, que avança por meio desse instrumento, e não pela conquista de corações e mentes na opinião pública via guerra cultural.
Portanto, se a direita quer fazer um contraponto a esta agenda de maneira adulta e dentro da lei, ela precisa capacitar-se para ser mais efetiva na sua atuação política institucional, de modo que esta ação não resulte apenas em media happenings, mas em entrega de resultados aferíveis e efetivos no ordenamento jurídico e nas políticas públicas.
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