Por desconhecer o funcionamento dos organismos multilaterais do pós-guerra e a maneira pela qual os distintos interesses nacionais se articulam e se conflitam no interior destes organismos, incluindo a OTAN, a direita brasileira cai na armadilha de abraçar teses requentadas da teoria terceiro-mundista criada pelos antigos soviéticos, acreditando assim estar defendendo o legítimo interesse nacional.
por paulo eneas
Uma tese, se é que pode ser chamada assim, que tem ganhado força entre setores da direita brasileira embriagados pelo duguinismo-putinismo, é a de que a grande ameaça à nossa soberania nacional seria representada pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a principal aliança militar formada também, mas não apenas, pelas democracias liberais do Ocidente.
Segundo esta tese, que reúne todos os elementos presentes na teoria do terceiro-mundismo introduzida pelos soviéticos no pós-guerra, a OTAN poderia em algum momento invadir militarmente o Brasil para atender aos interesses dos globalistas ocidentais e sua agenda, que inclui a Agenda 2030 da ONU e as demais pautas ideológicas dos globalistas ocidentais, desde ambientalismo até questões de ideologia de gênero e pautas identitárias.
Esta tese advém de uma série de equívocos grosseiros presentes na direita brasileira, que desconhece o que de fato são os organismos transnacionais do Ocidente e como eles funcionam, e de que maneira os distintos interesses nacionais neles presentes se articulam e até mesmo conflitam entre si.
O primeiro equívoco é acreditar que a OTAN é o braço armado de uma suposta Nova Ordem Mundial, o que pressupõe assumir que o aquilo que chamamos de Nova Ordem Mundial não é um projeto de poder abraçado por distintos blocos globalistas – o ocidental, o russo-chinês e o bloco islâmico – mas sim uma realidade institucional já existente e que já possui até mesmo uma governança e uma estrutura militar transnacional pronta para agir em seus interesses.
Não faz sentido falar em OTAN como braço de uma Nova Ordem Mundial justamente pela estrutura desta aliança militar: ela é composta de trinta países-membros que colocam-se em campos distintos ou mesmo conflitantes em relação aos projetos de poder de natureza globalista. Por exemplo, a Turquia é um país islâmico membro da OTAN.
Que sentido faria imaginar-se militares turcos, e portanto muçulmanos, combatendo em campo em favor de pautas como ideologia de gênero, feminismo, ambientalismo e outras?
Da mesma forma, países que fizeram parte da Cortina de Ferro da era soviética, como como Hungria, Polônia, Romênia, República Tcheca ingressaram voluntariamente na OTAN após o fim da União Soviética justamente para defender suas soberanias nacionais e integridade territorial e fazer frente ao sempre existente expansionismo russo.
Estes mesmos países, por sua vez, estão em conflito permanente com as Nações Unidas e a União Europeia por rechaçarem as pautas identitárias e comportamentais e ambientalistas impostas por estes organismos, em especial a União Europeia, que é o bloco com o mais acentuado viés antinacional, que levou resultou inclusive na saída do Reino Unido em 20116 no Brexit.
Logo, que unidade em termos de blocos geopolíticos ou mesmo ideológica pode existir entre estes países para imaginar-se que todos eles integram um grande projeto de Nova Ordem Mundial do qual a OTAN seria seu braço armado?
No caso particular da Hungria e da Polônia, são os que mais conflitam com a cúpula da União Europeia, da qual também fazem parte, justamente por resistirem às tentativas de imposição vindas de Bruxelas das pautas globalistas associadas à imigração, ideologia de gênero, feminismo, educação sexual de crianças e outras.
Estes dados concretos da realidade, expressa por interesses materiais efetivos de cada nação e não por uma imaginária homogeneidade de interesses de grupos de nações associadas a cada grande bloco, nos permitem depreender uma primeira conclusão:
A OTAN não é um projeto de poder globalista, uma vez que seus países-membros fazem parte de campos de projetos de poder globalista distintos, ou simplesmente não fazem parte de projeto algum, como a maioria dos países-membros do leste europeu.
Diferentemente da União Europeia, que constitui-se ela sim em um claro projeto de poder globalista em nível regional hostil às soberanias nacionais de seus países-membros, o que resultou na saída do Reino Unido do bloco no Brexit, a OTAN é unicamente uma aliança militar surgida no contexto da Guerra Fria.
A OTAN manteve sua existência após o fim da União Soviética e a dissolução do Pacto de Varsóvia, que era a versão soviética da aliança militar ocidental, unicamente em função das ameaças constantes do expansionismo russo em direção à Europa.
Este expansionismo russo, que continuou a existir na era pós-soviética, somente foi contido em parte pela decisão dos países que estavam sob ameaça russa de aderir à Aliança Militar Ocidental. Um dos países que não aderiu à OTAN, a Ucrânia, foi vítima desse expansionismo russo e foi invadido pela Rússia há um ano.
Como são tomadas as decisões na OTAN
Existe uma diferença enorme no processo de tomada de decisão na OTAN e na União Europeia. Nesta, as decisões são tomadas pela Comissão Europeia com sede em Bruxelas. Esta comissão é formada pela elite da burocracia do organismo, que não representa necessariamente os interesses de cada um dos países-membros do bloco.
O Parlamento Europeu com seus mais de setecentos eurodeputados e com sede em Estrasburgo, França, é uma peça de ficção, como afirmou em 2016 o ex-eurodeputado britânico Nigel Farage, uma vez que ele não possui capacidade de propositura legislativa, funcionando muito mais como um órgão auxiliar da Comissão Europeia, que é quem detém o poder de fato.
Por sua vez, as decisões na OTAN são tomadas obrigatoriamente por meio de consenso entre todos e cada um de seus trinta países-membros, segundo seus estatutos. No website da OTAN, o sumário executivo do processo de decisão é explícito ao afirmar:
Consensus decision-making is a fundamental principle which has been accepted as the sole basis for decision-making in NATO since the creation of the Alliance in 1949. Consensus decision-making means that there is no voting at NATO. Consultations take place until a decision that is acceptable to all is reached.
A tomada de decisão por consenso é um princípio fundamental que foi aceito como o único critério para tomada de decisão na OTAN desde a criação da Aliança em 1949. A tomada de decisão por consenso significa que não existe votação na OTAN. Consultas são realizadas até que se chegue a uma decisão aceitável para todos.
A versão completa da descrição do processo de tomada de decisão da OTAN pode ser lida neste documento aqui, denominado OTAN Policy and Decision Making. O documento deixa claro que em algumas situações o único consenso a que se chega é o de que não existe consenso, e portanto nenhuma decisão é tomada.
Na atual Guerra da Ucrânia, não houve consenso na OTAN quanto aos pedidos do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky para que a Aliança Militar estabelecesse uma no fly zone, zona de exclusão aérea, sobre o território ucraniano para fazer frente aos ataques aéreos russos.
Esta ausência de consenso, e portanto de ação por parte da OTAN, possibilitou que a Rússia pudesse continuar bombardeando a Ucrânia, inclusive suas áreas civis em flagrante cometimento de crime de guerra, sem que OTAN tomasse qualquer medida para impedir isso.
Esse fato joga por terra a narrativa mentirosa da propaganda e da desinformação russa de que o embate na Ucrânia seria entre o “conservador” Vladimir Putin e os “globalistas ocidentais” por meio da OTAN.
O cenário para uma hipotética agressão militar do Brasil pela OTAN
Para que a OTAN empreendesse uma hipotética agressão militar ao Brasil, como afirmam os nacionalistas-esquerdistas pró-China e pró-Rússia que exercem uma influência enorme sobre parte da direita brasileira, seria necessário em primeiro lugar que o Brasil agredisse militarmente algum país-membro da OTAN.
Pois o estatuto de fundação da aliança militar, datado de 4 de abril de 1949, diz em seu artigo 5o que uma agressão a qualquer um dos países-membros da OTAN implicará numa resposta militar conjunta de todos os demais membros da Aliança. Não temos notícia de alguma intenção do governo brasileiro de lançar bombas ou invadir o território de algum país-membro da OTAN.
Além da ausência desta pré-condição, precisaria haver um hipotético consenso entre os trinta países-membros da aliança para empreender uma agressão militar imotivada contra nosso país.
As pessoas influenciadas pela propaganda e desinformação russa, que são basicamente as teses requentadas da teoria do terceiro-mundismo criada pela antiga União Soviética no pós-guerra, acreditam que este consenso se daria em torno dos interesses e da agenda dos globalistas ocidentais.
Mas como mostramos mais acima, estas pautas globalistas estão muito longe de serem consensuais entre os países membros da OTAN. Pelo contrário, mostramos que muitos destes países-membros estão em conflito permanente com outros organismos transnacionais, principalmente a União Europeia, justamente por ser oporem a estas pautas.A defesa da soberania brasileira precisa ser tratada com seriedade
As considerações que fizemos acima não ignoram as preocupações que o Brasil deve ter no que diz respeito à defesa de sua soberania e integridade territorial. Pelo contrário, entendemos que os riscos e ameaças à nossa soberania nacional e integridade territorial existem e devem ser tratados com seriedade, e não com base em suposições ideológicas.
A verdadeira ameaça hoje à nossa soberania é o regime de ditadura venezuelana, armado pela Rússia, de quem é um proxy, que fomenta o crime organizado na América do Sul, que mantém ligações com grupos terroristas islâmicos, e hospeda em seu território grupos terroristas e milícias como o Wagner Group, organização paramilitar “pessoal” de Vladimir Putin.
A ameaça à nossa soberania reside na presença de ONGs estrangeiras na Amazônia e a presença crescente dos chineses na controle de nossa infraestrutura básica como ocorre no setor de energia, ou a dependência da China para nossa balança comercial agrícola.
São estas questões reais e materiais que devem ser objeto de análise da parte de quem realmente se preocupa com nossa soberania. E não a criação de espantalhos narrativos, como a suposta ameaça da OTAN, para justificar opções ideológicas em favor do alinhamento de nosso país com o bloco russo-chinês.