por paulo eneas
O traço característico da intelectualidade brasileira supostamente de direita ou conservadora surgida em anos recentes é a sua absoluta incapacidade de compreender a real natureza do Brasil profundo, a índole prevalecente no seio do povo brasileiro, suas reais necessidades e visões de mundo, bem como suas verdadeiras expectativas em relação aos políticos e ao sistema político como um todo.
Esta incompreensão, decorrente da importação pura e simples de modelos teóricos conservadores europeus e à acomodação confortável junto a essas formas de pensamento incapazes de espelhar a nossa realidade, levou essa intelectualidade de direita a conceber um povo brasileiro imaginário e utópico.
Esse povo brasileiro que só existe no imaginário da intelectualidade de direita seria profundamente conservador e verdadeiramente cristão, ignorando a realidade nua e crua dos católicos e protestantes de IBGE. Esse brasileiro imaginário jamais votaria em um político ladrão que tivesse sido condenado, uma hipótese irrealista que ignora por completo como foram construídas as elites políticas brasileiras ao longo de nossa história.
O desconhecimento da realidade vivida pela maioria dos brasileiros e sua substituição por uma projeção imaginária puramente ideológica de um brasileiro conservador ideal, projeção essa que reflete unicamente as veleidades ideológicas de uma parcela de nossa elite letrada, resultou na não disposição dessa intelectualidade de direita em se preocupar em elaborar políticas públicas para os problemas reais vividos pelos brasileiros de carne e osso.
Afinal, sempre foi mais confortável assumir que o brasileiro é conservador e tomar isto como taken for granted, e se ocupar sobre como o pensamento de um Edmund Burke ou Roger Scruton poderia agregar ao “óbvio” conservadorismo nato do brasileiro. Uma postura muito mais agradável do que colocar a mão na massa cinzenta para tentar compreender a dura realidade brasileira, não encaixável em qualquer modelo ou sistema teórico elaborado a partir de uma história muito distinta da nossa.
Tomemos um exemplo concreto: uma das políticas públicas de maior impacto empreendidas pela esquerda nas últimas décadas (óbvio que foi empreendida pela esquerda, pois a afetação intelectual da nossa direita a impede ou a exime da obrigação de pensar sobre políticas públicas) foram os programas assistenciais, especialmente o Bolsa Família. A direita teve duas posturas distintas em relação a estas políticas:
Num primeiro momento, no plano do discurso puramente político-ideológico, a direita limitou-se a insultar e ofender os beneficiários desses programas sociais, especialmente o Bolsa Família, que a direita passou a rotular pejorativamente como bolsa-miséria. Alguns setores passaram a ver nos programas sociais o caminho para a “implantação do comunismo”.
Num segundo momento, após sua chegada à presidência, a atitude da direita foi de prosseguir administrando tais programas, que foram pressionados pela pandemia, para ao fim e ao cabo disputar com a esquerda na sucessão presidencial do ano passado quem iria oferecer mais e mais programas assistenciais.
Ou seja, a direita não tinha e ainda não tem nada de concreto a propor sobre tais programas. Para além dos impactos político na formação de nichos ou currais eleitorais próprios do populismo, a direita não soube medir até mesmo a dimensão civilizacional deletéria que representa o fato de termos um quarto da população brasileira dependente de ajuda estatal.
A direita não foi capaz de propor alternativas a esse quadro, e não compreende que estas alternativas devem ser empreendidas em termos de portas de saída para tais programas, de modo a reduzir gradualmente a dependência dos mais pobres em relação ao Estado sem causar convulsão social e sem jogar os dependentes ainda mais na miséria.
Em nossa pesquisa sobre o assunto para artigo sobre Bolsa Família que iremos publicar em breve não encontramos um único estudo acadêmico de viés mais conservador ou mesmo liberal tratando do tema.
O mesmo pode ser afirmado em relação a um dos maiores problemas da sociedade brasileira que é a criminalidade, consumo de drogas e violência. Exceto por chavões e bordões de engajamento em rede social, a direita nunca foi capaz propor políticas públicas nesta área, não tendo sido nem mesmo capaz de promover a atualização do Código Penal ou da Lei de Execução Penal quando era governo.
Mais do que incompetência para governar, a nossa direita padece de um nanismo intelectual que a impede de conhecer e compreender a realidade profunda do Brasil. É mais cômodo e chique exibir erudição tomista do que compreender a natureza da formação da sociedade brasileira e propor soluções não-revolucionárias aos nossos principais problemas.
Não sem razão, autores como Gilberto Freire de Casa Grande e Senzala, ou Caio Prado Junior, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Raymundo Faoro e alguns outros intelectuais progressistas de matizes variadas continuam sendo as referências quando se procura conhecer o Brasil. São autores cuja produção acadêmica já vai pra mais de meio século.
E as produções dos conservadores, especialmente as mais recentes, onde estão? Teriam estado eles ocupados demais com Tomas de Aquino e Aristóteles, Burke e Scruton de modo que não puderam “perder tempo” se debruçando sobre a nossa realidade procurando compreender o Brasil e formular um Projeto de Nação?
Muitos ainda insistem em justificar essa miséria intelectual da direita brasileira por meio da tese segundo a qual a hegemonia cultural da esquerda seria resultante de uma imaginária estratégia de longo prazo em uma suposta “guerra cultural” na qual a esquerda teria saído vitoriosa.
Esta tese não encontra amparo na realidade. Pois por suposto, uma “guerra cultural” é uma guerra de ideias. Pode-se objetar que os meios para colocar as ideias em circulação contam, mas não é isso que mede a força das ideias. Historicamente, ideias “revolucionárias” ou “subversivas” vicejaram nos ambientes mais hostis, por serem fortes o bastante.
Isso significa então que se as ideias da esquerda foram vencedoras nesta suposta guerra é por que estas ideias seriam mais fortes que aquelas da direita? É evidente que não!
Se considerarmos que nenhum direitista conservador ou liberal é materialmente impedido de pensar e de colocar suas ideias em circulação, ainda que em condições distantes das ideais, decorre que a inegável hegemonia das ideias da esquerda, tanto nas políticas públicas quanto nas questões culturais e comportamentais, não reflete uma imaginária “guerra cultural”.
Decorre isto sim de uma vitória por WO, pois o que vimos nas últimas décadas no Brasil é que conservadores não tiveram competência nem capacidade para se ocuparem dos reais problemas brasileiros, nunca enxergaram a necessidade de se pensar um Projeto de Nação calcado na leitura honesta e não idealizada da realidade nacional.
Ou seja, a esquerda não venceu guerra cultural alguma, pois tal guerra cultural não existe, é uma mera abstração. O que existe é a incapacidade ou preguiça da direita em sair da sua zona de conforto e compreender de fato o que é o Brasil.