Nesse ensaio discorremos sobre as visões autoritárias e distorcidas sobre democracia que encontram amplo espaço em certos setores da direita ocidental e brasileira. Visões estas que são apenas versões requentadas com novo vocabulário das mesmíssimas ideias autoritárias originadas do movimento comunista na primeira metade deste século.


por paulo eneas
Não podemos de modo algum abraçar a ideia, muito difundida em certos círculos de direita, de que a democracia não funciona e não passa de uma expressão da decadência moral do Ocidente, sendo apenas uma fachada para o controle permanente da sociedade por parte de uma elite.

Essa ideia é apenas o discurso requentado da velha guarda comunista, adaptado para soar bem aos ouvidos do eleitor de direita.

Basta trocar “elites” por “burguesia capitalista” ou “classe dominante” e “controle” por “dominação de classe burguesa” e “guerra cultural” por “consciência de classe”, que todo o resto se mantém constante. No plano mundial, o “grande capital internacional” do repertório da velha guarda comunista deu lugar ao “globalismo” no repertório blablablístico da direita contemporânea.

Segundo essa concepção, o globalismo (uma espécie de terraplanismo geopolítico) consiste nos planos de dominação mundial que os grandes capitalistas ou “metacapitalistas” do Ocidente (de novo esses malvados) arquitetam entre si visando controlar a vida e o cotidiano do seu José da Silva e da dona Lucileide Penha que moram em Sapopemba ou na Baixada Fluminense e costumam ir a Igreja aos domingos.

O leitor mais crítico, e é bom que seja crítico e cético, poderá dizer: “ah, mas na pandemia tivemos uma agenda global que foi imposta”. Imposta, vírgula. Na pandemia houve as diretrizes, no mais das vezes conflitantes, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o fortíssimo lobby da indústria farmacêutica, é fato.

Mas a adoção das diretrizes da OMS foi decisão do governo de cada país. Nos Estados Unidos, o então presidente Donald Trump bravateou mas manteve Anthony Faucci no cargo e adotou tais diretrizes. No Brasil, Jair Bolsonaro idem: bravateou, mas elaborou e mandou aprovar a Lei 13.979 talhada para assegurar por força de lei a implementação destas diretrizes. O Brasil aliás foi o único país que teve uma lei especial para esta finalidade.

No Estado de Israel, Benjamin Netanyahu foi além e fez um acordo escandaloso com uma grande indústria farmacêutica envolvendo acesso a dados de informações médicas dos israelenses. Lá, foi a esquerda israelense que saiu às ruas para protestar contras as medidas. Rússia e China seguiram o mesmo caminho e adotaram as diretrizes e, no caso chinês, com maior rigor.

Porém, países como Suécia, Japão, Coreia do Sul e alguns outros ignoraram as diretrizes da OMS e tomaram medidas próprias para lidar a emergência sanitária. O Reino Unido seguiu uma diretriz de vai e vem, avanços e recuos, em relação às diretrizes. Por um acaso esses países sofreram alguma consequência por isso? As forças da OTAN, que os mais delirantes e paranoicos da direita acreditam ser o “exército dos globalistas”, ameaçaram invadir esses países por conta disso?

Portanto, uma análise realista e objetiva dos fatos da realidade mostram o quanto as noções de “globalistas”, “governo mundial” e outras semelhantes servem apenas para alimentar a mentalidade conspiracionista no seio da direita, incitando-a a combater espantalhos e inimigos imaginários no plano puramente retorico, facilitando assim sua captura pelo eixo do autoritarismo político de extração russo-chinesa.

Mas como toda boa teoria conspiratória, ninguém sabe quem são esses globalistas, onde e quando se reúnem, embora os mais ingênuos acreditam que é nas reuniões do Fórum Econômico Mundial, entidade privada de lobby e network empresarial internacional sem qualquer mandato institucional, que o destino do mundo está sendo decidido a cada ano.

A condenação de toda mudança como decadência
Uma ideia motriz na direita ocidental, e que também o era para os comunistas da velha guarda, é a ideia de decadência moral do Ocidente. Esta ideia tornou-se a vala comum onde se jogam todas as transformações e mudanças (incluindo as mudanças ruins, claro) que ocorrem na sociedade e foi amplamente usada por Adolf Hitler na propagação de sua ideologia genocida: contra a decadência moral ocidental (causada pelos judeus), oferecia-se a solução racista da pureza racial ariana.

Essa ideia de decadência moral parte da premissa falsa de que todas as mudanças na sociedade decorrem necessariamente de alguma intenção revolucionária na esfera de uma imaginária “guerra cultural” (nova versão da “consciência de classe” da velha guarda comunista), não restando portanto lugar algum para a inventividade humana positiva.

A ideia esquece também que todas as sociedades humanas estão em permanente mudança por serem formadas por, quem diria, seres humanos. São diferentes, portanto, das sociedades de formigas, que fazem formigueiros do mesmo jeito há milhões de anos.

A mesma ideia de decadência foi abraçada e fomentada pelo stalinismo. Este via na chamada “sociedade de consumo”, noção inventada pelos comunistas de então, a expressão da decadência burguesa do Ocidente. Ser decadente era ter a liberdade de escolher o que consumir numa economia de mercado, coisa inexistente na então vetusta e sóbria e miserável União Soviética.

O stalinismo difundiu essa ideologia antes mesmo da Guerra Fria e continuou com seu sucedâneo após o fim da União Soviética, alimentada e disseminada pelos russófilos ocidentais que passaram a infestar a direita após a Era Reagan.

A condenação da democracia não apenas como regime político, mas como forma de organização e mediação das relações de poder da sociedade e o vaticínio de seu suposto fracasso iminente tornou-se no início desse século plataforma política explícita do Partido Comunista Chinês e do imperialismo russo de Vladimir Putin, e amplamente verbalizada por ideólogos propagandistas do eurasianismo como Alexandr Dugin.

Por fim, essa noção autoritária nascida dos comunistas do início do século passado e que serviu de plataforma discursiva para o nazismo até virar plataforma do regime chinês e russo, foi inacreditavelmente abraçada por um segmento expressivo da direita ocidental após a era de Ronald Reagan, o último líder político verdadeiramente de direita e anticomunista do Ocidente.

Daí surgiu então a direita que temos hoje: uma direita que passou a ser tão revolucionária e tão antiocidental e antiamericanista e obscurantista quanto a esquerda comunista da velha guarda.

Democracia não se resume a eleições
É preciso enfatizar o óbvio para essa direita deformada pela mentalidade revolucionária e conspiracionista, principalmente aqui no Brasil: democracia não se resume a eleições. Democracia tem a ver com liberdade de expressão, sistema de justiça efetivo, devido processo legal coma presunção de inocência, garantia do direito de propriedade, para ficar em uns poucos itens.

Algum russófilo tupiniquim que idolatra o regime russo acredita que o direito de propriedade está assegurado a todos os cidadãos russos e chineses? Acredita mesmo que o ditador Vladmir Putin é uma unanimidade nacional russa e que não há críticos do regime? Acredita que estes críticos têm liberdade de expor suas opiniões? Todos os russos concordam com a invasão russa da Ucrânia que também está custando a vida de milhares de jovens russos?

Perguntem ao líder oposicionista russo Alexei Navalny sobre o assunto. Mas vai ser preciso psicografia, pois ele foi assassinado a mando de Putin.

As eleições para escolha de governantes são o aspecto mais vulnerável das democracias contemporâneas por que possibilitam que as piores pessoas possam ascender ao poder com objetivos que nada têm a ver com a res publica.

Mas as eleições também possibilitam que as melhores pessoas possam ocupar posições de poder. Basta lembrar que Ronald Reagan virou presidente norte-americano e foi figura chave para colocar um fim ao império do terror soviético sem precisar disparar um tiro. Mas em contraste, temos hoje no Partido Republicano um candidato que é apoiado pelo herdeiro e continuador do regime soviético com chances não desprezíveis de ser eleito. São as vicissitudes da democracia.

No caso do Brasil, por que então as melhores pessoas da sociedade não estão ocupando as posições de poder? No meu entender isso acontece por que as pessoas honestas e decentes têm um nojinho esnobe e elitista da política e se recusam a arregaçar as mangas e entrar no jogo político, dispostas a sujar os pés sem sujar a alma, e fazer com inteligência e estratégia o que precisa ser feito.

Argumentos como o de que existe um “sistema” que as impede não passam de desculpas esfarrapadas e conspiracionistas que ocultam a incompetência e o despreparo para entender como o mecanismo real da política funciona.

O chamado “sistema” não é uma entidade metafísica ou um Leviatã transcendental que tudo controla por meio de uma mão invisível que mexe cordas invisíveis. O sistema político é feito de pessoas de carne e osso e interesses, legítimos ou escusos. E este sistema será aquilo que as pessoas que o compõem dele decidirem fazer. O sistema político não é um dado da natureza, não dá em árvore, é produto e criação humana.

O fato de haver, como muito se alega, influência do crime organizado no sistema político, apenas reforça o que afirmei antes: se criminosos se organizam para praticar crimes e galgar posições de poder político, o que impede que pessoas de bem também se organizem não para praticar crimes, óbvio, mas para ascender ao poder político? Complexo de vira-lata com tempero de vitimismo apocalíptico?

Por fim, deve-se observar que certas características do povo brasileiro, como a mentalidade estatista e clientelista, de fato explicam muito de nossas mazelas políticas, mas não explicam tudo.

Não explicam tudo por que não é “o povo” que define os rumos políticos de uma nação, exceto quando esse povo fizer parte de uma tradição civilizacional consolidada, o que nunca foi o caso brasileiro. A responsabilidade é exclusiva do lado decente e honesto de nossas elites que seguem se abstendo por pura afetação de participar com seriedade e inteligência do processo politico.

A origem da mentalidade revolucionária no seio da direita
É preciso uma pesquisa e estudo mais amplos para entender como e a partir de que momento grande parte da direita ocidental abraçou a causa revolucionária dos comunistas da primeira metade do século passado. Esse estudo mais aprofundado ainda precisa ser feito, mas seguramente existiu a ação meticulosa e competente da inteligência de desinformação da extinta União Soviética e depois continuada pelo regime de Vladimir Putin.

Mas uma análise muito breve de alguns autores que influenciaram e influenciam e muito os círculos supostamente intelectualizados da direita pode dar uma pista do caminho investigativo a ser seguido. Dentre esses autores podemos citar dois aqui:

a) E. Michael Jones: militante antissemita norte-americano autor do livro Libido Dominandi. Trata-se de um panfleto conspiracionista que sustenta, sem dar qualquer evidência factual ou documental, a tese de que a chamada liberalidade sexual (a qual o autor atribui a uma suposta ação conspiratória e planejada por parte dos judeus) teria servido como instrumento de dominação política e social. O autor nem mesmo define o que seria essa “dominação política e social”. It is just taken for granted.

O livro de Michael Jones foi amplamente difundida no Brasil por Olavo de Carvalho. A Anti-Defamation League, principal entidade de combate ao antissemitismo nos Estados Unidos, traz um perfil e histórico completo do autor que pode ser visto nesse link aqui, onde mostra, entre outros, que em seu livro The Jewish Revolutionary Spirit, Michael Jones endossa teses de negacionistas do Holocausto, como Michael A. Hoffman e o ideólogo antissemita Kevin MacDonald, além das ligações de Michael Jones com extremistas da esquerda antissemita dos Estados Unidos.

Se o leitor fizer uma busca em português por Libido Dominanti na internet, irá encontrar várias resenhas positivas e elogiosas ao livro e ao autor, como esta aqui da Vide Editorial. Muitas dessas resenhas foram escritas por figuras públicas da direita bolsonarista, inclusive detentores de mandato parlamentar.

b) Hans-Hermann Hoppe, economista autor de “Democracia: O Deus Que Falhou”, livro que faz uma mistura de libertarianismo radical com anarcocapitalismo temperada com pitadas de eugenia pra justificar o que o autor entende como fracasso do modelo de democracias liberais do Ocidente, e conclui, como sempre ocorre, oferecendo uma solução no campo do autoritarismo.

Esses são apenas dois autores que têm “feito a cabeça” do segmento pretensamente intelectualizado da direita ocidental nas últimas décadas. Observe-se que nunca nenhum deles foi questionado aqui no Brasil pela direita. E seguramente existem outros da mesma estirpe, como Daniel Estulin, agente russo apreciado e admirado pela direita. O que explica em grande parte a razão pela qual essa direita ocidental abraçou abertamente o projeto de poder autoritário e imperialista de Moscou.

Atualmente o imperialismo e autoritarismo russo materializados na figura de Vladimir Putin têm na direita ocidental, principalmente a norte-americana com Donald Trump e a europeia com vários líderes, como Viktor Orban e Marine Le Pen, seus principais aliados políticos.

Essas ideias hostis a democracia e à própria civilização ocidental também ganharam corpo na direita com influenciadores da internet como Alex Jones desde os anos noventa e seus imitadores que pululam as redes no Brasil e nos Estados Unidos. Mais recentemente com Tucker Carlson e outros.

Na esfera das lideranças políticas, essas ideias encontraram voz e expressão política, ainda que dissimulada, em Donald Trump nos Estados Unidos e no grosso dos atuais líderes de direita da Europa (Marine Le Pen, Viktor Orban, o holandês Geert Wilders, entre outros) e no Brasil com Bolsonaro e seu rebento precoce (e em vias de ser abortado), Pablo Marçal.

É preciso romper com o vírus da bolchevização
Entendo que a direita no Brasil e no Ocidente precisa romper com esse vírus do autoritarismo e do antiocidentalismo que a tomou desde após a Era Reagan, e retomar a via da defesa da tradição democrática liberal e pró-ocidente da direita.

A direita precisa também desenvolver a capacidade de lidar com diferenças, assumir a bandeira da separação explícita entre a política (que trata dos assuntos da polis, da esfera pública) e religião e orientação sexual (assuntos da esfera privada, da livre escolha dos indivíduos), pois este é o único caminho inteligente e racional para fazer frente ao extremismo da agenda identitária da esquerda.

Precisa tomar para si a defesa da igualdade de direitos civis entre homens e mulheres, uma conquista civilizacional do Ocidente tão importante quanto o fim da escravidão, mas que paradoxalmente é questionada e desprezada por parte da direita. Estes seriam os primeiros passos cruciais para a direita romper com o esse terrível processo de bolchevização a que foi submetida nas últimas décadas. Ilustração de capa: representação da Eclésia da democracia ateniense.

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O livro é possivelmente a primeira obra publicada expondo a verdadeira face do bolsonarismo, sem render-se às narrativas delirantes criadas pelos bolsonaristas em torno da figura do “Mito” e sem ceder às narrativas puramente retóricas para fins de guerra política que são usadas pela esquerda. Clique na imagem para ver resenha completa e informações onde adquirir seu exemplar.

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